E lá vou
E lá vou, de nariz enfiado na carteira a remexê-la como forma de distração. Entra alguém e senta-se ao meu lado. Tremo de olhar. Fecho os olhos e ponho os ouvidos em alerta. Ouço um barulho de jornal. Posso mesmo sentir aquele cheirinho característico. Fico com comichão no nariz e tenho de me assoar. Obrigo-me a abrir os olhos, a ir à carteira buscar um lenço, levo-o ao nariz e, sem mais, solto um espirro tempestuoso. Consigo atenuar os efeitos da tempestade no lenço que me tapa a cara toda. Deixo-me estar “encoberta” durante uns segundos até ter a certeza de que depois da tempestade vem a bonança. Ouço do meu lado uma voz atrevida «Bless you!» [Santinho]. «Thank you» [Obrigada], respondo educadamente. Guardo o lenço no bolso do casaco e faço um movimento de viragem com o pescoço que parece levar séculos a terminar, mas não tenho coragem de cumprir o ângulo e olho a figura sentada ao meu lado de soslaio num espaço de segundos, fazendo “reset” ao pescoço.
– Este mundo está mesmo de cabeça para o ar! – Solta estas palavras virado para a frente, mas com os olhos revirados para mim, à espera de algum tipo de feedback.
– Sim, pois está. Mas de que fala em concreto?
Face ao meu sinal verde, roda a face para mim, olhando-me fixamente nos olhos.
– Antes de mais, o meu nome é Rodni. Falo de experiências que andam a fazer com animais, negando que o fazem com humanos, mas a verdade é que tudo indica que sim. Negam que usar óvulos e esperma humanos – e trazer à vida… não lhe chamam bebés… mas sim “amostras” disto ou daquilo in vitro – ainda no seu estado inicial, portanto, embrionário, é criar vida humana. Mesmo que não se trate de vida humana, criam vidas para deitar fora… em prol da busca do divino. Não diz isso aqui, já sou eu a compor o cenário. Mas estou convicto de que é isto que fazem e sei lá que mais…
Abano a cabeça em consentimento, mas não sei como desenvolver um tema tão secreto e, ao mesmo tempo, tão à tona como este na área da investigação.
– Parece que ninguém consegue provar nada… tanto quanto sabemos! O melhor será aguardar que alguém dê um passo em falso que mais ninguém consiga abafar… – Surge-me como resposta mais inteligente naquele momento e olho-o fixamente nos olhos. Não consegui alcançá-los porque, nesse preciso momento, Rodni levantou-se num ápice, agarrou nas coisas dele e pôs-se a andar. Fico sentada, estupefacta, a pensar naquele curto intervalo da minha vida. Segundos depois, sou assaltada pelo susto de um forte abrir da porta e vejo o vulto que me largara há instantes.
– O comboio parou. Saímos aqui e vamos tomar um café? Podemos prosseguir de viagem mais tarde?
Reflito num instante. Devo, não devo? Rendo-me à situação e aceito o convite.